“Irai-vos e não pequeis, não se ponha o sol sobre a vossa ira” é uma exortação dada pelo apóstolo Paulo registrada em Efésios 4:26. Diante desse versículo, muitas pessoas ficam em dúvida sobre o significado da expressão “irai-vos e não pequeis”, achando se tratar de um tipo de contradição.
Irai-vos e não pequeis: o contexto de Efésios 4:26
Antes de tudo, é importante saber que o contexto dessa passagem revela que Paulo estava falando acerca da unidade dos santos no corpo de Cristo, mostrando que tal unidade deve ser preservada na prática mesmo diante das diversidades (Ef 4:1-16).
O apóstolo apontou para a verdade de que a nova natureza que os redimidos possuem em Cristo exige um novo padrão de vida que se opõe ao pecado e reflete a santidade. Paulo até utilizou a analogia de “despir e vestir”, ou seja, os salvos devem se despir das roupas gastas da velha natureza e se vestir do novo homem, criado segundo Deus (Ef 4:17-6:20).
Para tornar mais claro esse ensino, Paulo descreveu seis implicações práticas dessa dinâmica:
- Deixar de mentir para dizer a verdade (Ef 4:25,26).
- Saber controlar a ira (Ef 4:26,27).
- Deixar de furtar, mas trabalhar naquilo que é correto (Ef 4:28).
- Saber controlar as palavras não dizendo palavra torpe, mas usando-as para a edificação (Ef 4:29,30).
- Ficar longe da amargura, mas andar em amor, sendo benignos e compassivos uns com os outros (Ef 4:31-5:2).
- Se afastar de qualquer impureza e imoralidade (Ef 5:3-5).
O que significa “irai-vos e não pequeis”?
Nessa expressão registrada na Carta aos Efésios, o apóstolo Paulo está evocando o Salmo 4:4, onde o salmista Davi escreveu: “Irai-vos e não pequeis; consultai no travesseiro o coração e sossegai”.
Para entendermos o significado da expressão “irai-vos e não pequeis”, antes precisamos considerar algumas coisas acerca da ira. A ira é um dos vícios das obras da carne (Gl 5:20,21). O mesmo apóstolo, escrevendo a Timóteo, ensina que se deve orar “levantando mãos santas, sem ira e sem contenta” (1Tm 2:8).
Tiago, em sua epístola, também escreve que devemos ser “prontos para ouvir, tardios para falar e tardios para se irar-se, pois a ira do homem não produz a justiça de Deus” (Tg 1:19,20). Além disso, o próprio Paulo, no mesmo capítulo 4 de Efésios, adverte que devemos ficar longe de “toda amargura, e cólera, e ira, e gritaria, e blasfêmias” (Ef 4:31).
Por outro lado, na Bíblia encontramos a ira sendo atribuída à pessoa de Deus (1Rs 11:9; Sl 7:11; Hb 12:29). Além disso, temos registrado nos Evangelhos que Jesus ficou irado (Mc 3:5; Jo 2:15-17), e mais a frente encontramos Paulo escrevendo: “Irai-vos e não pequeis”. Então como devemos entender tais passagens?
Quando Paulo escreve “irai-vos e não pequeis” ele está dizendo que a ira do cristão não deve estar associada ao pecado. Isso significa que em algumas ocasiões é até necessário que fiquemos irados, mas essa ira deve ser entendida como um tipo de indignação que se mostra na defesa da justiça, isto é, a ira nesse caso é uma justa indignação.
Em outras palavras, muitas vezes nós devemos demonstrar indignação, principalmente quando ficar calado numa determinada situação seja o mesmo que ser omisso e conivente com o erro, mas ao mesmo tempo não podemos deixar com que tal indignação se degenere em pecado.
Portanto, a ira em si não é necessariamente pecaminosa, visto que o próprio Deus é um Deus irado, de modo que sua ira “se revela do céu contra toda a impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça” (Rm 1:18), ou seja, a ira de Deus é santa, é justa e é uma de suas perfeições.
O Deus que é amoroso e misericordioso é igualmente santo e justo, e não pode ficar indiferente ao pecado, antes, derrama sua justa ira sobre o pecador (Sl 7:11). No entanto, porém, a ira na vida de homens caídos quase sempre está fundamentada sob os pilares do pecado, e é nesse sentido que ela se torna reprovável e carnal, ou seja, enquanto a ira de Deus está sempre oposta ao pecado, a ira humana quase sempre esta associada a ele.
É exatamente por isso que o apóstolo escreveu “irai-vos e não pequeis”. De forma bem prática, podemos dizer que o cristão deve sempre ficar irado contra o pecado, porém quando essa ira é direcionada ao comportamento do próximo, facilmente ela pode se tornar pecaminosa, convertendo-se em mágoa, rancor e ódio.
Não se ponha o sol sobre sua ira
Justamente para enfatizar ainda mais o cuidado que o cristão deve ter ao ficar irado, o apóstolo escreveu que ele não deve permitir que o sol se ponha sobre sua ira, e ainda continuou dizendo: “e não dêem lugar ao diabo” (Ef 4:27).
Isso significa que o diabo procurará a todo custo transformar a justa indignação em um comportamento pecaminoso, como por exemplo, o ódio e a mágoa, criando assim uma barreira ao perdão.
Portanto, para que não se corra o risco de pecar permitindo que a ira se degenere em ressentimento, o que o cristão deve fazer é não deixar que o dia termine estando ele ainda alimentando tal indignação.
É por isso que o conselho “irai-vos e não pequeis” é especialmente direcionado àqueles que foram feitos novas criaturas em Cristo, e possuem em suas vidas as virtudes do fruto do Espírito, como o domínio próprio, a benignidade e a longanimidade, pois estes sabem que a indignação contra o pecado é requerida, como da mesma forma é também requerida a unidade entre os irmãos e a amabilidade para com todas as pessoas.
Como cristãos genuínos, devemos ficar irados contra o pecado, contra o desprezo pelo Nome do Senhor, contra a injustiça, contra a falta da verdade, contra a impunidade, contra a corrupção e tantos outros comportamentos que são frutos da depravação humana.
Irai-vos e não pequeis é uma ordem que deve ser cumprida, porém o que sempre deve estar claro é que a justa ira esperada dos seguidores de Cristo não se fundamenta neles próprios, mas no padrão exigido pela santa Palavra de Deus.