O relato sobre Paulo e Silas na prisão é um dos textos mais conhecidos do Novo Testamento, e está registrado no livro de Atos dos Apóstolos capítulo 16. Certamente o que mais chama a atenção das pessoas nesse texto é a informação sobre um terremoto que abalou os alicerces do cárcere onde esses dois homens de Deus estavam.
Esse capítulo também é utilizado frequentemente em sermões, mas infelizmente muitas vezes é interpretado de forma completamente equivocada. Neste texto nós meditaremos em alguns pontos principais sobre a prisão de Paulo e Silas.
Conhecendo o contexto histórico da prisão de Paulo e Silas
O apóstolo Paulo estava em sua segunda viagem missionária. Na primeira viagem seu principal companheiro havia sido Barnabé, porém devido a algumas discordâncias com relação ao comportamento de João Marcos, primo de Barnabé, ambos se dividiram.
Paulo, então, escolheu Silas para acompanhá-lo nesse novo empreendimento missionário. Paulo e Silas passaram por muitas cidades, porém foi na estadia deles em Filipos que ocorreu tal prisão.
Paulo e Silas não estavam sozinhos, estavam também com eles Timóteo e Lucas. Essa equipe de missionários partiu para a cidade de Filipos, uma importante colônia romana. Essa Filipos é a mesma que em aproximadamente 42 a.C. foi palco da famosa batalha em que Marco Antônio e Otaviano derrotaram Brutus e Cássius, os assassinos de Júlio César.
No primeiro século Filipos era uma cidade de destaque na região da Macedônia, pois possuía uma economia próspera, principalmente devido à mineração de ouro, e também era referência na educação, com uma conhecida escola de medicina.
Paulo e Silas em Filipos
A equipe de missionários liderada por Paulo ficou em Filipos durante vários dias. Lucas relata que no primeiro sábado em que estavam ali, eles foram para o Rio Gangites, e encontraram várias mulheres que se reuniram no local para a oração sabatina.
O apóstolo, acompanhado de sua equipe, começou a pregar o Evangelho àquelas mulheres. Entre essas mulheres estava Lídia, uma mulher que o Senhor lhe abriu o coração para que ela se convertesse ao Evangelho de Jesus.
Lídia e os membros de sua casa foram batizados no Rio Gangites, e após o batismo ela ofereceu hospedagem à equipe missionária. Com os missionários hospedados na casa dessa mulher, o Evangelho continuou sendo pregado na cidade e a Igreja começou a ser ampliada.
O exorcismo de uma jovem antes da prisão
No versículo 16 do mesmo capítulo 16 de Atos, somos informados sobre uma jovem escrava que tinha um espírito de adivinhações. Sua prática de adivinhação trazia muitos lucros aos seus donos.
Em grego, Lucas escreve que ela tinha um espírito chamado “Píton”, que em nossas traduções aparece apenas como “adivinhação”. Na mitologia grega Píton era uma lendária serpente que guardava o Oráculo Délfio, e que acabou morta por Apolo. Assim, tal termo era utilizado para se referir ao espírito de adivinhação característico dos médiuns da época.
Com tudo isso, Lucas está enfatizando que a jovem era usada por demônios. Por muitos dias a jovem clamou que aqueles homens eram “servos do Deus Altíssimo”, e que estavam proclamando o caminho da salvação.
Não devemos entender essa declaração como um reconhecimento genuíno do evangelismo que estava ocorrendo ali. Lembre-se que ela estava sendo usada por demônios, e tal declaração era uma artimanha de Satanás. Paulo entendeu dessa forma, e, em nome do Senhor Jesus, expulsou o espírito que atormentava aquela mulher (At 16:18).
Paulo e Silas são presos
Os donos daquela escrava, quando perceberam que tinham perdido uma fonte de lucro, ficaram revoltados e violentamente prenderam Paulo e Silas. O texto diz que eles foram agarrados e arrastados até as autoridades (At 16:19).
Note que apenas Paulo e Silas foram presos. Isso ocorreu porque as denúncias que aqueles acusadores fizeram foram fundamentadas na nacionalidade dos m issionários. Perceba que antes de qualquer acusação eles deixam claro que “estes homens são judeus”.
Com isto, possivelmente eles estavam querendo estabelecer, de alguma forma, uma ligação entre Paulo e Silas e os judeus que tinham sido expulsos de Roma pelo imperador Cláudio, acusados de criar perturbação religiosa em aproximadamente 49 d.C. (At 18:2).
Perceba que no versículo 20 Paulo e Silas são acusados justamente de criar confusão e perturbação na cidade. Como Lucas era gentio, e Timóteo apenas um meio-judeu, então as acusações caberiam perfeitamente apenas contra Paulo e Silas.
Também é importante perceber que em nenhum momento a jovem foi mencionada na acusação. Toda denúncia partiu do confronto entre os interesses romanos e os interesses judeus.
Na época a religião judaica era permitida dentro do império, porém os judeus não poderiam tentar converter os cidadãos romanos, e naquele momento ainda não havia ficado clara para os romanos a distinção entre Cristianismo e Judaísmo.
Com todo o tumulto que se aglomerou na praça da cidade, os magistrados ignoraram qualquer procedimento legal e deram ordem para que Paulo e Silas fossem despidos e açoitados. Por serem cidadãos romanos, Paulo e Silas não poderiam, de forma alguma, ter passado por essa seção de tortura.
Paulo e Silas no cárcere
Paulo e Silas foram lançados na prisão. Ao carcereiro foi ordenado que ele guardasse os dois prisioneiros com segurança, ou seja, com total rigidez. O carcereiro então colocou Paulo e Silas no “cárcere interno e prendeu seus pés no tronco” (At 16:24).
As cadeias da época eram divididas em duas partes: o cárcere externo e o cárcere interno. Na parte externa os presos desfrutavam de mais liberdade, podendo andar e receber visitas. Já na parte interna o aprisionamento era bem mais rígido, e geralmente reservado aos prisioneiros mais perigosos. A prova disto é que o carcereiro colocou as pernas de Paulo e Silas no tronco, para que se tornasse impossível qualquer possibilidade de fuga.
Aqui também devemos considerar que após uma seção de açoites os presos ficavam completamente debilitados, o que provavelmente era, na ocasião, a condição física de Paulo e Silas.
O próprio uso do tronco nas pernas também era um tipo de tortura, pois o preso perdia praticamente toda mobilidade, além de que em muitas vezes os buracos de cada perna eram bem afastados, causando grande incomodo.
Paulo e Silas oram e adoram na prisão
Com seus corpos totalmente doloridos, e submetidos a condições sub-humanas, Paulo e Silas resolveram orar a Deus e cantar louvores a Ele. Naquele momento eles estavam com dor, fome e sede, mas seus corações estavam voltados a Deus.
O texto nos informa que os outros presos também ouvem as orações e os cânticos de Paulo e Silas. Com toda certeza esse foi um testemunho genuíno de dois seguidores de Cristo. Se seu Mestre sofreu calado no Calvário, naturalmente seus discípulos entendiam que não tinham qualquer direito de reclamar.
Um terremoto acontece
A Bíblia diz que de repente houve um violento terremoto, de maneira que os alicerces da prisão foram sacudidos. Com isso, todas as portas foram abertas e todas as correntes dos prisioneiros se soltaram.
É verdade que na Macedônia havia incidência de terremotos, porém claramente esse terremoto específico foi providência de Deus, ou seja, Deus usa até mesmo de meios naturais para prover milagres inexplicáveis. Aquele terremoto tinha um papel decisivo nos propósitos de Deus.
Apesar de todos os prisioneiros estarem livres, nenhum deles escapou. É possível que todos ficaram perplexos ao redor de Paulo e Silas admirando o poder do Deus sobre o qual os missionários cantavam.
Quando o carcereiro acordou e viu que todas as portas da prisão estavam abertas, ele planejou se matar. Na verdade ele sabia que se um único prisioneiro escapasse sua própria vida seria dada em troca pela vida do fugitivo, sendo assim morto (At 12:19; 27:42). Entretanto, antes que ele se suicidasse, Paulo o avisa que ninguém havia fugido (At 16:28).
O propósito da prisão de Paulo e Silas e do terremoto no cárcere
Aqui precisamos fazer algumas considerações, pois é justamente nesse ponto onde várias interpretações erradas são tomadas.
Algumas pessoas utilizam essa passagem para tentar ensinar que a oração da madrugada é mais poderosa, tão poderosa que até mesmo um terremoto ocorreu quando Paulo e Silas oraram à meia-noite.
No entanto esse ensino é completamente estranho, não só a esse texto, mas a toda Escritura. O terremoto aqui não serviu para mostrar a eficácia da oração feita num determinado horário da noite. Saiba mais sobre o que a Bíblia diz acerca da oração da madrugada.
Outras pessoas também usam esse relato sobre Paulo e Silas na prisão para pregar um tipo de “determinismo”, onde Deus faz qualquer coisa para resolver o seu problema. Logo, é comum ver cristãos reivindicando um tipo de terremoto figurado para que seus problemas sejam resolvidos.
Em primeiro lugar, não há qualquer evidência no texto de que Paulo e Silas tenham orado para que fossem libertos da prisão, muito menos que tenham solicitado o terremoto que ocorreu. O texto claramente parece indicar que os dois missionários estavam simplesmente rendendo graças ao Senhor.
É claro que Deus tem um zelo especial pelos seus escolhidos. Através da profecia do profeta Isaías, somos informados que ainda que uma mãe se esqueça do próprio filho, Deus jamais se esquece do seu povo (Is 49:15,16). No entanto, isso não significa ausência de problemas e dificuldades.
Devemos nos lembrar de que o próprio Paulo foi preso outras vezes, sendo que de sua última prisão em Roma ele não conseguiu sair vivo. Também em nenhuma dessas outras vezes o terremoto se repetiu.
O que houve ali foi a perfeita execução de um plano do Senhor. O terremoto foi um instrumento usado por Deus para que seus propósitos soberanos fossem cumpridos.
Obviamente a libertação de Paulo e Silas estava implícita no plano, mas não era o ponto principal e exclusivo dele. Se Deus quisesse apenas libertá-los, ele poderia tê-lo feito como fez com o apóstolo Pedro, enviando um anjo e o libertando silenciosamente (At 12:7), aliás, isso já havia ocorrido outra vez (At 5:19).
O terremoto não apenas quebrou as correntes que prendiam Paulo e Silas e abalou os alicerces do cárcere, foi muito mais além do que isto, o terremoto quebrou as correntes da incredulidade e abalou os alicerces do coração do carcereiro e também de toda sua família.
Aquele terremoto revelou o poder e a majestade do Senhor, bem como a soberania de seus propósitos eternos. O grande objetivo do terremoto pode ser notado nas palavras do carcereiro: “Senhores, o que devo fazer para ser salvo?” (At 16:30).
Os missionários lhe responderam: “Creia no Senhor Jesus” (At 16:31). A salvação havia alcançado não só o carcereiro, mas toda sua casa (incluindo seus servos). Paulo e Silas ensinaram àquela família a Palavra do Senhor, e imediatamente todos foram batizados.
Naquele momento o carcereiro já não era mais o mesmo, ele havia nascido de novo. Sua atitude já demonstra o caráter de alguém regenerado. Se poucas horas antes ele havia lançado no cárcere dois homens debilitados, sem ao menos se importar com as necessidades deles, agora ele estava cuidando das feridas dos missionários (At 16:32). Somente o Espírito Santo pode promover uma transformação tão radical.
O carcereiro também conduziu os missionários até sua casa, e ali os alimentou. Para ele, Paulo e Silas não eram mais prisioneiros, mas agora eram irmãos em Cristo.
O texto bíblico nos informa sobre a grande alegria do carcereiro por não só ele, mas toda sua família, agora crerem em Deus. A expressão grega desse texto revela uma confiança permanente, ou seja, a fé daqueles irmãos não era nominal, mas verdadeira.
Depois, Paulo e Silas voltaram voluntariamente para a prisão. Eles não tentaram se aproveitar da situação para fugir. No outro dia, pela manhã, as autoridades ordenaram que os dois fossem soltos.
É possível que a notícia do que ocorreu na prisão tenha percorrido a cidade, e aqueles homens tenham relacionado a presença dos dois missionários com o terremoto que havia abalado aquele lugar, e isso pode ter deixado os magistrados estarrecidos. Seja como for, eles queriam que Paulo e Silas fossem embora.
Entretanto, Paulo se recusou a ir, e também expôs a injustiça que tinha sido cometida com dois cidadãos romanos, e exigiu uma retratação pública. A revelação de que Paulo e Silas tinham cidadania romana perturbou os magistrados, que foram até a prisão e pediram desculpas aos missionários, implorando também que eles deixassem a cidade.
Após saírem a prisão, Paulo e Silas foram para a casa de Lídia, onde se reuniram com os irmãos e, depois de encorajá-los, partiram de Filipos.
Esse episódio também tem algumas similaridades com o naufrágio que Paulo sofreu quando estava sendo transportado como prisioneiro para Roma. O propósito do naufrágio não era para libertá-lo, mas para fazer com que o poder de Deus fosse revelado na Ilha de Malta (At 28).
Da mesma forma ocorreu no episódio da prisão de Paulo e Silas em Filipos, com o consequente terremoto que atingiu aquele lugar. Tudo serviu para contribuir com a pregação do Evangelho ali. O propósito de Deus com aqueles acontecimentos era estabelecer e fortalecer sua Igreja naquela cidade.
Depois, quando olhamos para a igreja de Filipos na epístola escrita pelo próprio Paulo àqueles irmãos, podemos entender o quão importante foi aquela comunidade cristã para o ministério do apóstolo. Na verdade, havia uma profunda comunhão entre os crentes filipenses e o apóstolo, os quais por várias vezes socorreram Paulo em suas necessidades (Fp 4:14-18).
Quando Paulo escreveu sua Carta aos Filipenses, ele se referiu também aos bispos e diáconos (Fp 1:1). Isso significa que a Igreja ali havia prosperado, o Evangelho estava sendo pregado, e o reino de Deus avançando.
Todavia, tudo isto tinha começado com a conversão de uma mulher chamada Lídia, com a expulsão de um espírito de adivinhação de uma jovem escrava, com uma prisão violenta, com um terremoto milagroso, e com a conversão do carcereiro e sua família.
Essa é a história da fundação da igreja de Filipos. Nessa história podemos ver como nosso Deus é Soberano e seus planos infalíveis. Ele poupou a vida de Paulo e Silas na ocasião do tumulto, tortura e prisão, porém não os poupou do sofrimento. Apesar disso, os dois missionários entendiam que Deus estava no controle de tudo, e ao invés de questionarem o Senhor, eles O adoraram.
Ao contrário do que algumas pessoas pensam, essa passagem não nos ensina a reivindicar um terremoto divino para que nossos problemas sejam solucionados, mas nos ensina a adorar ao Senhor em meios às adversidades.
O episódio da prisão de Paulo e Silas nos fornece uma grande lição sobre qual deve ser o nosso comportamento diante do sofrimento. Como escreveu o apóstolo Pedro, quando suportamos o sofrimento por estarmos fazendo a vontade do Deus, Ele nos aprova (1Pe 2:20; 3:14; 4:13-16).
Paulo e Silas sabiam que os seguidores de Cristo são submetidos constantemente ao sofrimento, e é por isso que são eles que encorajam os crentes na casa de Lídia após terem saído da prisão, e não o oposto.
A lição aqui é muito clara: em Cristo somos mais que vencedores, mesmo em meio ao sofrimento. O cristão verdadeiro diante da tristeza está sempre alegre, mesmo na pobreza está enriquecendo a muitos, mesmo nada tendo possui tudo. Ele capaz de enfrentar qualquer coisa, pois seus olhos estão fixos em Jesus (2Co 6:4-10).