Um ao outro ajudou, e ao seu companheiro disse: Esforça-te.
(Isaías 41:6)
Esse texto do livro do Profeta Isaías é muito conhecido entre os cristãos. Certamente ele está entre os preferidos na escolha de temas para cultos específicos. Já perdi as contas de quantos congressos eu tive notícias de que esse versículo foi usado como tema.
Quando utilizado em tais congressos, geralmente esse texto é aplicado com o propósito de enfatizar a importância da união, do companheirismo, da harmonia e do trabalho em equipe. Logo, o tema principal é um só: ajude o seu irmão! Tudo isso parece muito bonito, porém o tema principal deveria ser outro: ajude o seu irmão a interpretar a Bíblia!
Nesse texto, faremos uma análise simples do versículo 6 do capítulo 41 do livro de Isaías, para que possamos compreender a aplicação correta da frase “Um ao outro ajudou, e ao seu companheiro disse: Esforça-te“.
Um ao outro ajudou: entendendo Isaías 41
Não pretendo fazer um estudo completo e detalhado desse capítulo, pois isso tornaria este texto muito extenso e fatalmente fugiria do nosso tema principal, no caso, o versículo 6. De forma resumida, podemos dizer que o capítulo 41 esta dentro de uma seção do livro de Isaías que compreende os textos presentes entre os capítulos 41 e 46, e que se desenvolvem considerando os temas introduzidos já no capítulo 40. Essa seção não é difícil de interpretar, mas também não é a das mais fáceis. Muitos estudiosos debatem acerca da articulação dos assuntos abordados nesses capítulos. Tais debates geralmente se concentram sobre uma característica interessante que pode ser notada nos capítulos em questão, a saber, um tipo de estrutura que parte do geral para o específico, ou seja, uma referência geral em um capítulo é desenvolvida de forma bem mais específica em outro capítulo mais a frente.
Mantendo em mente que esse capítulo pertence a uma unidade maior, vamos estudá-lo exclusivamente, dividindo-o da seguinte forma:
- A obra de Deus assombra os idólatras (41:1-7).
- Israel não precisa ter medo (41:8-20).
- Os ídolos são impotentes diante de Deus (41:21-29).
Lendo o capítulo 41, e percebendo essa divisão, podemos entender que a mensagem principal apresentada tem o objetivo de renovar a confiança de Israel que estava temeroso, de modo que Israel não precisava se amedrontar diante das nações, as quais ficariam assombradas pelo que Deus faria em sua história, ficando evidente que Deus não rejeitou a seu povo, ao contrário, o usaria na concretização de seus propósitos no mundo.
Agora nos concentrando diretamente nos versículo 1 ao 7, percebemos que se trata de uma cena de juízo. Na verdade, essa é a primeira de várias cenas de juízo nessa parte do livro de Isaías (Is 21:21-29; 42:18-25; 43:8-13; 44:6-20; 45:20-25). Basicamente, nesses versículos, Deus convoca as nações juntamente com os deuses as quais elas representam, para que compareçam perante o concílio a fim de apresentar evidência sobre quem é Deus. Nesse caso, Deus é quem é o juiz, o que convoca o tribunal, inicia o caso e declara o veredito. Então, considerando esse princípio, podemos construir o seguinte esboço:
- Convocação do juízo (vers. 1): todas as nações são chamadas a reconhecer a soberania de Deus e a enxergar o seu controle sobre a História. A ordem para que as nações renovem as suas forças, estabelece um contraste entre a força desamparada delas e a força medida pela fé.
- A ação de Deus na História (vers. 2-4): aqui temos uma referência a Ciro o Grande, da Pérsia (cerca de 559-530 a.C.), a qual foi vitorioso em estabelecer grandes conquistas (Is 44:24; 45:5,13; 46:11). Fazendo referência as conquistas futuras de Ciro, Deus então exige que seus ouvintes reconheçam que tudo isso era um feito dEle, de maneira que as nações estavam debaixo da autoridade do Senhor, e elas desempenhariam o papel que fosse necessário para que seus propósitos fossem executados. Logo, Deus é o todo poderoso que convoca Ciro, e as vitórias alcançadas por este, foram profetizadas de antemão (Is 41:25-29; 44:6-8; 45:20,21), fazem parte de um plano muito maior (Is 41:22-24; 42:1-4; 44:6-8; 45:8-13) e, por fim, resultaram na remição de Israel do exílio (42:9,10,21-25; 43:18-21; 45:1; 49:7,22-23; 52:15; 60:3,16). No versículo 4 temos a pergunta retórica: “Quem fez e executou tudo isso?”. No próprio versículo temos a resposta: “Eu, o Senhor”. Ele é o único no universo que pode dizer essas palavras, pois não há ninguém como Ele. Deus no princípio chamou tudo a existência, e ninguém pode resistir a sua vontade, Ele é o primeiro e o último e isso garante que tudo está sob o controle dEle.
- A resposta atemorizada das nações (vers. 5-7): esses versículos mostram a resposta das nações ante a evidência da soberania de Deus na História. O medo às levou à rebelião. Diante do desafio de Deus, e encarando a ação dEle na História, as nações ficam aterrorizadas e recorrem a seus deuses.
Um ao outro ajudou: entendendo os versículos 6 e 7
Com base no esboço apresentado acima, facilmente podemos entender a aplicação correta do versículo 6. O contexto claramente é o de idolatria. Quando estão sendo afligidas e esmagadas, tais nações idólatras buscam auxílio em suas divindades. Entretanto, antes que os seus deuses possam ajudá-las, primeiramente eles precisam ser fabricados. O ser humano idólatra procura criar seus próprios deuses na esperança de que eles lhe proteja das ações do Deus Soberano que governa todas as coisas.
Assim, enquanto os idólatras se concentravam na fabricação de seus deuses, “um ao outro ajudou, e ao seu companheiro disse: Esforça-te“. Esse versículo mostra pessoas aterrorizadas nutrindo uma coragem recíproca, num tipo de falsa cordialidade. Em meio ao desespero, elas preferem encorajar uns aos outros na expectativa de estarem fabricando ídolos de boa qualidade, ao invés de recorrerem ao Deus que realmente possui o poder sob o curso da História.
No versículo seguinte (7), temos a descrição do processo de fabricação dos ídolos. O artífice é o que molda a forma rude do ídolo; o ourives prepara os metais preciosos com que o ídolo será revestido; o que alisa com o martelo ajusta o material utilizado (ouro ou prata) no lugar devido; e, finalmente, o que bate na bigorna prepara os pregos que firmarão o ídolo em seu lugar. No fim desse processo, eles acreditam ter fabricado uma divindade que poderá socorrê-los.
Um ponto interessante nesses versículos é que, diante do terror, não são os deuses que encorajam os idólatras, e, sim, os idólatras que encorajam uns aos outros dizendo “seja forte“. Também não são os deuses que os mantém firmes, mas são eles que precisam usar pregos para que seus deuses não oscilem, ou seja, tais deuses são totalmente dependentes de seus fracos e miseráveis criadores.
Um ao outro ajudou: como aplicar esse texto corretamente?
Sem dúvida, esse texto nos transmite uma mensagem maravilhosa, e, como toda a Palavra de Deus, podemos aprender muito com ele, aplicando-o em várias situações de nossas vidas. Porém, esse caráter atemporal das Escrituras, não nos dá o direito de isolar um texto para aplicarmos de forma fantasiosa no que bem entendermos.
Se o objetivo é construir um sermão sobre companheirismo, harmonia e união entre os irmãos, certamente, na Bíblia, encontraremos muitos textos adequados que mostram a importância que há na unidade da Igreja como corpo de Cristo, ou seja, não precisamos distorcer outro texto para servir aos nossos propósitos. Sobre união, o texto aqui estudado, no máximo nos mostra que os ímpios cooperam uns com os outros em suas loucuras, numa forma de rebelião contra o verdadeiro Deus, já que a Bíblia mostra claramente que a atitude dos homens ao fazer para si deuses segundo seus desejos é um sinal explicito de rebelião diante do Senhor.
Ao interpretarmos um texto de forma equivocada, perdemos a chance de aprendermos a verdadeira lição que tal texto nos ensina. Nesse caso de Isaías 41, além da interpretação direta do versículo no pano de fundo a qual ele pertence, somos também confortados sabendo que é o nosso Deus quem governa a História, que tudo está sob o seu controle e nada escapa da força de suas mãos. Esse texto ainda nos mostra o grande privilégio que temos de servir o Deus verdadeiro que abriu os nossos olhos, tirando-nos das trevas da ignorância e da miséria da idolatria, e hoje, ao invés de desesperadamente procurarmos auxílio em ídolos construídos por nossas próprias mãos, preferimos confiantemente ouvir as palavras do nosso Deus dizendo:
Não temas, porque eu sou contigo; não te assombres, porque eu sou teu Deus; eu te fortaleço, e te ajudo, e te sustento com a destra da minha justiça.
(Isaías 41:10)
Perceba o contraste que há. Enquanto os idólatras encorajam e fortalecem uns aos outros, mantendo, eles mesmos, seus deuses firmes, nós, que servimos o verdadeiro Deus, somos fortalecidos por Ele, somos protegidos por Ele, somos ajudados por Ele e somos sustentados por Ele. Os ímpios são criadores de seus deuses, mas nós somos criaturas do nosso Deus. Ele está no controle, e não há ninguém como Ele. Que lição extraordinária podemos aprender quando interpretamos esse texto corretamente.