O Que é o Apócrifo Apocalipse de Abraão?
O Apocalipse de Abraão é um texto apócrifo de origem judaica que chegou até nós principalmente em versão eslava, embora se suponha que sua forma primitiva tenha sido escrita em hebraico ou aramaico e depois vertida para o grego.
Tradicionalmente, os estudiosos têm dividido o Apocalipse de Abraão em duas grandes partes, cada uma com características e interesses literários próprios. Na primeira parte o apócrifo relata a transição de Abraão de um ambiente saturado de idolatria para a descoberta e o chamado de um Deus único. Já na segunda parte a obra registras experiências e visões apocalípticas experimentadas por Abraão.
As lendas sobre a juventude de Abraão
A primeira parte do Apocalipse de Abraão pode ser descrita como uma coletânea de lendas sobre a juventude de Abraão. Essa seção inicia apresentando o ambiente familiar de Abraão e a ocupação de Terá, demonstrando o quão dependente a sociedade estava dos deuses feitos de madeira e pedra. De acordo com o texto, Abraão vivia em meio a uma cultura profundamente envolvida com a idolatria, na qual seu pai, Terá, atuava como fabricante e vendedor de ídolos.
Contudo, o texto indica que Abraão, desde cedo, questionava o valor e o poder daqueles objetos de culto. Ele observava que as estátuas não reagiam e que, apesar de todo o respeito que as pessoas lhes dedicavam, não passavam de materiais inertes. O texto registra que, em dado momento, um dos ídolos se quebrou e Abraão confrontou seu pai, argumentando que, se aquela estátua não pôde sequer se proteger, como poderia proteger outras pessoas?
Na sequência, o texto desenvolve a narrativa ao mostrar como Abraão destruiu os ídolos, enfatizando que ele buscava evidências de um Deus verdadeiro, vivo e capaz de ouvir e responder. Nesse contexto, o escrito relata que Abraão experimentou as imagens de várias maneiras, tentando provar seu suposto poder, mas cada teste revelou apenas a inação e a incapacidade dos objetos. O texto também registra que o pai de Abraão ficou indignado ao descobrir a destruição de seu estoque de deuses, contrastando com a fé monoteísta que começava a nascer no coração de Abraão e com a prática familiar de idolatria que Terá representava.
Por fim, a primeira seção do apócrifo Apocalipse de Abraão termina com o momento em que Abraão, diante de tantas reflexões, escutou uma voz divina que o orientou a deixar de lado a confecção e a veneração de ídolos e a buscar o Deus supremo, criador de todas as coisas. Abraão foi convocado a deixar a casa de seu pai e, logo após sua partida, o fogo consumiu o lar de Terá, marcando o rompimento definitivo com o passado.
As visões apocalípticas de Abraão
A segunda seção do Apocalipse de Abraão descreve o encontro divino experimentado por Abraão. De acordo com o texto, Abraão foi conduzido por um anjo identificado como Yahoel em uma jornada rumo ao Monte Horebe, onde, obedecendo ao comando de Deus, preparou um sacrifício de animais. Esse anjo é descrito como revestido de atributos celestiais, transmitindo o poder e a autoridade do Nome Inefável. Nessa parte, Abraão foi orientado quanto ao significado profundo do sacrifício, demonstrando a importância da fé monoteísta.
Abraão, porém, viu que nem todos os seres celestiais desejavam ajudá-lo. O cenário apresentado pelo texto apócrifo foi perturbado pela investida de Azazel, o anjo caído e sedutor, que se manifestou na forma de um pássaro impuro e tentou desviar o patriarca do caminho da verdadeira adoração. Mas Abraão, firme em sua fé, não cedeu às tentações. Yahoel, com autoridade, combateu o adversário, assegurando que o poder do Altíssimo não poderia ser corrompido e declarando que as vestes celestiais – símbolos da pureza e da posição divina – agora pertenciam a Abraão.
Em seguida, o texto traz sua porção mais apocalíptica, por assim dizer. A obra relata que Abraão foi elevado aos céus de forma milagrosa, conduzido por uma pomba, e passou a contemplar a vastidão do reino celestial. O texto descreve como uma sucessão de céus se desdobrou diante dos olhos de Abraão, revelando a sinfonia dos anjos e o esplendor dos seres celestiais que entoavam hinos de louvor.
Chegando ao que o texto chama de sétimo céu, Abraão avistou o trono divino, embora Deus permanecesse oculto, pois Sua essência era invisível aos olhos humanos. Abraão experimentou visões sobre eventos importantes do passado, como a vida no Éden e a Queda da humanidade no pecado, e sobre eventos futuros, como a destruição do Templo, o destinos das nações e a promessa de uma redenção messiânica.
Durante essa experiência, Abraão questionou o porquê da permissão divina para a corrupção humana e, em resposta, Deus revelou que ao homem fora concedida a capacidade de escolher o mal, mas que essa escolha também implicaria a justa punição para os que se desviam.
O propósito do apócrifo Apocalipse de Abraão
Na Bíblia, Abraão aparece já como um homem idoso. Assim, parte do conteúdo do Apocalipse de Abraão, tal como em outras obras apócrifas, dedica-se a trazer narrativas haggáticas sobre o período da vida do patriarca que não está registrado nas Escrituras.
Já a parte apocalíptica possui forte influência midráshica. É apocalíptica porque faz revelações acerca do mundo invisível e oferece profecias sobre o futuro escatológico. A dimensão midráshica percebe-se na maneira como o texto reelabora e comenta o capítulo 15 de Gênesis, expandindo e interpretando cada detalhe, provavelmente a partir de tradições orais ou escritas que circulavam no período em que a obra foi composta.
No Apocalipse de Abraão, percebe-se também a preocupação em explicar a origem do mal e a responsabilidade humana perante esse mal. O texto menciona Azazel no papel do diabo, como o grande tentador e a serpente do Éden, lembrando a forma como outros escritos antigos associam seres angélicos caídos à tentação de Adão e Eva.
Outra característica interessante do Apocalipse de Abraão é que, nessa obra, o anjo Yahoel reivindica possuir os poderes de um Nome inefável – atributo que, na tradição rabínica posterior, seria associado a Metatron – e assume funções que, em outros textos judaicos, seriam tipicamente do arcanjo Miguel, de modo que, na obra, parece ocorrer uma espécie de fusão entre Miguel e Metatron na figura do anjo Yahoel.
A obra traz a discussão sobre dualismo e monismo, isto é, o debate sobre a natureza do mal tanto como um poder independente quanto como algo, em última instância, sujeito à soberania divina. Nesse sentido, o texto defende a subsistência do mal em razão do livre-arbítrio do homem e da liberdade relativa dos anjos caídos, sugerindo que as forças do mal não se equiparam ao poder divino, mas são toleradas como parte de um desígnio misterioso que confere à humanidade a possibilidade de escolher.
A data do apócrifo Apocalipse de Abraão
Determinar com precisão a data de composição do Apocalipse de Abraão não é simples, pois o texto, em sua forma atual, apresenta diferentes camadas redacionais e eventuais interpolações (talvez até de caráter gnóstico). Já mencionamos que o livro pode ser dividido em duas grandes partes, e os estudiosos atribuem a cada uma delas datas distintas.
Então, de modo geral, os especialistas propõem que a redação inicial do texto — especialmente a seção que trata das lendas sobre a juventude de Abraão — possa ter ocorrido, no máximo, na primeira metade do século 1 d.C. Isso porque a narrativa que apresenta Terá como um idólatra convicto e o processo de conversão de Abraão já era conhecida em forma de tradição antes dessa data, conforme sugerem os paralelos com outras literaturas haggádicas antigas.
Em outras palavras, a primeira parte dessa obra parece ter sido fruto de um processo de compilação que reuniu tradições orais e escritas relacionadas a Abraão, já circulantes em ambientes judaicos do período do Segundo Templo. Basicamente, essas tradições expandiam a narrativa bíblica, descrevendo a infância de Abraão e seu rompimento com a idolatria.
Já a segunda parte do livro, que constitui a porção propriamente apocalíptica, é usualmente datada entre o final do século 1 e o início do século 2 d.C. Um dos indicadores-chave é a possível referência à destruição do Templo em 70 d.C., ou seja, algumas passagens do livro parecem indicar um conhecimento prévio da destruição do Templo e do consequente sofrimento do povo judeu.
Por fim, alguns estudiosos também sugerem que pequenas partes do texto podem ter sido resultado de adições posteriores, decorrentes de influências cristãs e até mesmo gnósticas, durante a transmissão do material em círculos helenistas, especialmente quando o conteúdo judaico passou a ser traduzido para o grego. Inclusive, a transmissão dessa obra foi algo interessante, e os estudiosos defendem que ela ocorreu em pelo menos três estágios. Primeiro, houve um texto original em hebraico ou aramaico. Depois, ocorreu uma tradução para o grego, a qual se perdeu. Por fim, surgiu a versão eslava na Idade Média, provavelmente oriunda da versão grega.
O autor do apócrifo Apocalipse de Abraão
As discussões sobre a datação do Apocalipse de Abraão indicam claramente que essa obra não foi escrita por Abraão. Na verdade, a obra surgiu quase dois mil anos após a época em que Abraão viveu.
Obras como o Apocalipse de Abraão, a Ascenção de Isaías e os livros de Enoque, são chamadas de pseudoepígrafas. Isso quer dizer que são obras literárias atribuídas falsamente a autores famosos ou reconhecidos, mas que, na verdade, não foram escritas por essas pessoas.
As obras pseudoepígrafas eram comuns em várias tradições literárias antigas, e essa prática podia ser motivada por várias razões, como aumentar a popularidade de uma obra, transmitir uma mensagem religiosa ou filosófica com mais aceitação, ou simplesmente aproveitar a reputação de um nome famoso para conferir maior autoridade ou credibilidade ao texto.
Então, de fato não se sabe quem escreveu o Apocalipse de Abraão. O que se sabe é que muito provavelmente essa obra, em sua versão final, contou com vários autores, como por exemplo, escribas judeus do período do Segundo Templo.
A pesquisa acadêmica de manuscritos antigos se baseia em análises internas (considerando a linguagem, o estilo e os temas da obra), em paralelos com outras literaturas da época e em eventuais menções históricas e tradições posteriores, a fim de propor uma datação adequada e identificar a existência de um ou mais redatores.
A importância do apócrifo Apocalipse de Abraão
O Apocalipse de Abraão é apenas um escrito apócrifo antigo, nada mais que isso. Essa obra jamais foi incluída no cânone hebraico do Antigo Testamento, nem no cânone cristão do Novo Testamento. Não há qualquer indício de que esse livro apócrifo tenha sido objeto de estudo regular nas escolas rabínicas, tampouco de que tenha sido considerado literatura relevante na tradição cristã.
Academicamente, essa obra não pode ser considerada nem mesmo como fonte histórica sobre a vida de Abraão, pois, como vimos, ela foi escrita muitos séculos depois do período em que o próprio Abraão viveu. Seu valor, na verdade, resume-se basicamente à sua utilidade como testemunho do pensamento e da produção literária judaica e helenística do final do período intertestamentário e dos primeiros séculos depois de Cristo.
Portanto, o conteúdo do Apocalipse de Abraão não pode ser tomado como doutrina e jamais pode ser equiparado às Escrituras. Especificamente, no Cristianismo, essa obra sempre permaneceu como um documento marginal, embora eventualmente possa ter circulado em algumas comunidades cristãs primitivas e entre grupos sincréticos e gnósticos, que manipulavam textos judaicos para sustentar doutrinas heterodoxas. Nós sabemos que grupos heréticos envolvidos com o gnosticismo se interessavam por narrativas que enfatizavam o conflito cósmico entre as forças do bem e do mal, bem como por interpretações alegóricas e apocalípticas das Escrituras hebraicas, e o Apocalipse de Abraão pode ter sido usado com esse propósito.