A Relação Entre Davi e Bate-Seba foi Consensual?
O relato bíblico a respeito da relação de Davi e Bate-Seba é um dos mais conhecidos por todos, pois trata-se do registro do pecado cometido pelo rei mais emblemático de Israel. Talvez com exceção do pecado de Eva e Adão que resultou na Queda da humanidade, o pecado envolvendo o rei Davi e Bate-Seba é o mais lembrado de toda a Bíblia.
Mas diante do relato bíblico, muito gente questiona se a relação entre Davi e Bate-Seba foi ou não uma relação consensual. Sobre isso, há diferentes interpretações, mas no geral, todos concordam que o que aconteceu foi algo injustificável, um pecado terrível. No entanto, a questão discutida é: Bate-Seba teria sido uma vítima do rei de Israel ou teria sido tão culpada quanto ele? Antes de abordarmos este ponto, é importante conhecer melhor o contexto em que essa relação ocorreu.
Como aconteceu a relação entre Davi e Bate-Seba
De acordo com o texto bíblico, a relação entre Davi e Bate-Seba ocorreu num contexto de guerra em Israel. O exército israelita estava no campo de batalha, quando o rei Davi enxergou do terraço do seu palácio em Jerusalém uma mulher muito bela se lavando. O esposo daquela mulher era um guerreiro das forças de Israel e, por tanto, estava ausente da cidade naquele período.
A Bíblia mostra que Davi cobiçou aquela mulher. Incialmente Davi não sabia quem era Bate-Seba. Então, ele perguntou aos seus servos a respeito da identidade da moça, e eles lhe informaram que se tratava de uma mulher casada. Na verdade, Bate-Seba era neta de Aitofel, o conselheiro de Davi, filha de Eliã, um dos melhores guerreiros de Davi, e esposa de Urias, um dos soldados mais leais a Davi e a Israel.
Dominado pela cobiça, Davi não se importou com nada disso, e mandou que seus servos trouxessem Bate-Seba ao seu palácio, onde se relacionou com ela. Depois da relação, Bate-Seba foi para casa onde mais tarde descobriu que havia engravidado do rei.
Quando soube da gravidez de Bate-Seba, Davi tentou esconder o seu pecado. Ele trouxe o marido de Bate-Seba de volta do campo de batalha, na tentativa de enganá-lo fazendo com que ele fosse para casa e tivesse relações com sua esposa. Caso isso acontecesse, a gravidez de Bate-Seba seria justificada. Porém, Urias não aceitou ir para casa se deitar com sua mulher enquanto seus companheiros estavam no campo de batalha.
Ao perceber que Urias não cederia, Davi ordenou que ele fosse colocado na frente da batalha e deixado para morrer. O plano de Davi deu certo, e depois da morte da morte de Urias ele tomou Bate-Seba por esposa. Tudo parecia ter ficado escondido, até que Deus levantou o profeta Natã e denunciou o pecado de Davi com Bate-Seba.
Bate-Seba teria sido imprudente ao se lavar?
Alguns estudiosos sugerem que como Davi viu Bate-Seba do terraço do seu palácio, de alguma maneira o lugar em que ela estava se banhando não era totalmente reservado. Dessa forma, eles argumentam que Bate-Seba pode ter sido imprudente nesse sentido, pois resolveu se lavar num lugar onde podia ser vista.
No entanto, essa interpretação parece ser muito problemática, pois não há nada no texto bíblico que apoie esse tipo de conclusão. O fato de Davi ter conseguido ver Bate-Seba se lavando, não significa que ela foi imprudente. Aqui não podemos nos esquecer de que Davi viu Bate-Seba do terraço do seu palácio. Essa informação do texto bíblico é importante, porque do palácio Davi tinha uma visão estratégica e privilegiada da cidade. Em outras palavras, do seu palácio Davi conseguia ver coisas que as outras pessoas em suas casas não conseguiam ver.
Além disso, o registro bíblico da relação entre Davi e Bate-Seba, começa enfatizando que toda essa trama ocorreu no tempo em que os reis costumavam sair à guerra. Isso significa que o texto muito claramente coloca Davi como alguém que estava num lugar onde não deveria estar. O exército israelita estava no campo de batalha, mas Davi havia resolvido ficar em Jerusalém.
Portanto, talvez Bate-Seba nem mesmo soubesse que o rei estava no palácio. Mas, ainda que Bate-Seba soubesse da presença do rei, talvez ela não tivesse a percepção de que o terraço do palácio possibilitava a visão do lugar em que ela se purificava.
Então, dizer que Bate-Seba teria sido imprudente nesse episódio, não passa de uma especulação sem fundamentação bíblica. E mesmo que Bate-Seba tivesse sido imprudente escolhendo se lavar num lugar onde poderia ser vista pelo rei, isso em hipótese alguma dava a Davi o direito de tomá-la por mulher.
Bate-Seba teria seduzido Davi intencionalmente?
Outros comentaristas argumentam que Bate-Seba pode ter, propositalmente, seduzido o rei de Israel escolhendo fazer a sua purificação num lugar e numa ocasião em que pudesse se insinuar para ele.
Novamente, esse posicionamento é mais uma especulação que não se sustenta a uma análise cuidadosa do texto bíblico. Em nenhuma parte, o escritor bíblico coloca Bate-Seba como alguém que arquitetou e teve êxito num plano de sedução do rei de Israel. Ao contrário disso, quando Deus levantou o profeta Natã para confrontar Davi, a mensagem divina colocou nitidamente Davi como o responsável pelo que havia acontecido. Não há no texto bíblico nenhuma repreensão contra Bate-Seba.
Pela Lei Mosaica, um casal que praticava adultério consensual era punido com a morte, mas nenhuma punição é direcionada especificamente a Bate-Seba. Na verdade, o profeta Natã confrontou Davi contando uma parábola que denunciava o seu pecado, e nessa parábola de denúncia contra Davi, Bate-Seba é retratada como uma ovelha inocente que havia sido capturada ou tirada de forma arbitrária de seu dono original por alguém mais poderoso.
Além disso, na sequência da repreensão divina, repetidas vezes o texto bíblico indica que Davi tomou ou se apoderou de uma mulher sobre a qual não tinha nenhum direito. Em sua repreensão, basicamente o profeta Natã afirmou que Davi havia roubado a mulher de Urias.
Bate-Seba tinha uma carta divórcio de Urias?
Algumas pessoas também argumentam que quando a relação entre Davi e Bate-Seba ocorreu, supostamente ela possuía uma carta de divórcio do seu marido. Essas pessoas se apegam a antigas tradições judaicas que indicam que quando um homem saia à guerra, ele deixava uma carta de divórcio condicional para sua esposa, caso o pior lhe acontecesse no campo de batalha.
De fato, há evidências de que na cultura judaica um marido podia fazer de sua própria morte uma condição para a validação do divórcio, e provavelmente o seu principal objetivo com isso era dar à sua esposa a chance de um casamento fora da lei do levirato. Na lei do levirato, a viúva tinha de se casar com um dos irmãos de seu marido morto. Então, com essa carta de divórcio que possuía efeito retroativo, na ocasião da morte do marido a mulher não assumia o status de viúva, mas de mulher divorciada.
Mas isso não muda o caráter da relação entre Davi e Bate-Seba. Mesmo que Bate-Seba tivesse uma carta de divórcio com previsão de retroatividade dada por Urias antes de sair à guerra — algo que é impossível de se saber com certeza — ainda assim quando Davi a tomou, Urias estava vivo e era seu marido à época. Além disso, foi o próprio Davi quem provocou a morte do marido de Bate-Seba.
De qualquer forma, a repressão de Deus contra Davi através do profeta Natã não foi a repreensão contra alguém que se relacionou com uma mulher desimpedida, mas foi a repreensão contra alguém que roubou a mulher de outro homem. Outra informação importante, é que o texto bíblico também relata a lamentação de Bate-Seba por seu marido morto.
Davi se impôs sobre Bate-Seba
A interpretação mais coerente biblicamente é a de que Bate-Seba foi uma vítima nessa história. Supor que o que aconteceu foi algo que trouxe satisfação a Bate-Seba, porque, afinal, ela se relacionou com o rei de Israel e posteriormente se tornou sua esposa, é fazer uma inferência no texto bíblico e julgar os pensamentos e o caráter de uma mulher sem nenhuma evidência ou base bíblica para isso.
Portanto, uma leitura natural do texto bíblico indica que Davi usou de sua posição de poder, usou de sua realeza e de suas prerrogativas como líder da nação, para querer se impor sobre o casamento de Bate-Seba, sobre a vida de Urias, e sobre a Lei de Deus que condenava sua cobiça e seu comportamento pecaminoso.
Além disso, vale lembrar que quando Davi cobiçou Bate-Seba, ela estava fazendo sua purificação conforme mandava a Lei. Isso quer dizer que, enquanto Davi estava quebrando a Lei ao cobiçá-la, Bate-Seba estava cumprindo a Lei observando às regras quanto à purificação das mulheres.
Davi forçou Bate-Seba?
Também é importante observar que o texto bíblico não emprega nenhuma palavra que denota violência física de Davi contra Bate-Seba. No mesmo livro de Samuel, o escritor bíblico registrou o desastroso episódio envolvendo Amnom e Tamar. Nesse relato, o escritor usou termos hebraicos que não deixam qualquer dúvida de que Amnom agiu com violência contra Tamar, enquanto ela tentou resisti-lo.
Mas o mesmo escritor não usou os mesmos termos para descrever a atitude de Davi contra Bate-Seba. Portanto, o relato bíblico não indica que Davi usou de violência física para consumar sua relação com Bate-Seba. Isso, no entanto, não torna menos odioso o que Davi fez, e não muda o fato de que Bate-Seba foi violada por ele.
Algumas pessoas questionam o porquê de Bate-Seba não ter se recusado a ir ao palácio, o porquê de ela não ter resistido, o porquê de ela não ter gritado por ajuda. A verdade é que, naquele tempo, quando ocorria esse tipo de situação no reino, normalmente a demanda era levada até o rei, para que ele pudesse resolver a questão de acordo com a Lei, punindo o culpado e dando amparo à vítima.
No caso de Bate-Seba, o agressor era o próprio rei. Não havia a quem ela recorrer, não havia quem pudesse ajudá-la. Em Israel, todos estavam debaixo das ordens de Davi. Também é interessante considerar a informação bíblica de que a Lei Mosaica não considerava culpada de adultério uma mulher que não tivesse quem a livrasse no momento de uma relação não consensual (Deuteronômio 22).
Porém, quem vingou e puniu o culpado nessa história foi o próprio Deus. O profeta Natã mostrou a Davi que estava comprometido com uma autoridade muito superior à autoridade do rei. Então, Deus usou aquele homem para que o rei que parecia ser intocável, percebesse que não passava de um miserável digno de morte.
Entre Davi e Bate-Seba, ela foi a vítima
Bate-Seba foi vítima justamente da pessoa que tinha o dever de protegê-la enquanto líder da nação. Ela foi vítima de alguém que usou de sua posição superior de autoridade para coagi-la. A Bíblia jamais esconde os erros e defeitos dos seus heróis. Quem adota um tipo de interpretação que coloca Davi como vítima nessa história envolvendo Bate-Seba, parece querer ocultar aquilo que a Bíblia denuncia, atenuar aquilo que a Bíblia reprova, esconder aquilo que a Bíblia revela, justificar aquilo que é injustificável perante o padrão moral de Deus.
No entanto, nesse ponto o texto bíblico mostra a grande diferença entre Davi e Saul, o rei que o antecedeu. Enquanto o rei Saul sempre esteve mais preocupado em conseguir justificativas para seus erros ao invés de buscar o caminho do arrependimento, Davi, por outro lado, entendeu que havia transgredido a Lei do Senhor que tanta amava e se deleitava. O Salmo 51 mostra toda sua contrição diante de Deus por causa do pecado que havia cometido. Em seu clamor de arrependimento, Davi revelou que sua maior preocupação era ser lançado fora da presença do Senhor, e ter o Espírito Santo retirado de sua vida.
Davi se arrependeu de forma genuína e sincera, e encontrou o perdão do Senhor. Porém, o seu pecado teve consequências terríveis e duradouras em sua família. Sua casa se dividiu e ele teve de chorar as mortes de alguns de seus filhos, sendo o primeiro deles o filho de seu adultério com Bate-Seba (2 Samuel 12).
A família de Bate-Seba também se voltou contra ele. Aitofel, o avô de Bate-Seba, traiu Davi e se tornou conselheiro de Absalão durante a revolta civil promovida por ele. Inclusive, foi do avô de Bate-Seba o conselho para que Absalão violasse as concubinas de Davi perante todo o Israel. Por isso, muitos teólogos do Antigo Testamento acreditam que a atitude de Aitofel contra Davi foi uma represália por não aceitar o que o rei havia feito a sua neta, Bate-Seba.